Na velhice, alguns sintomas podem não ser expressados claramente, sendo, inclusive, confundidos com sinais de outros problemas.
A trajetória profissional é concluída e chega a aposentadoria,
percebe-se um afastamento gradual dos que antes viviam mais próximos,
fica cada vez mais nítida a noção de que a vida é finita – morrem
parentes e amigos, surgem doenças, o corpo não funciona como antes.
Envelhecer, como o dia a dia insiste em comprovar, é conviver com
perdas, que são gatilhos para um mal muito frequente na terceira idade: a
depressão.
Com o avançar da idade, as dificuldades podem se acumular ou se
apresentar a intervalos curtos de tempo. Imagine uma pessoa que acabou
de se aposentar e tem de lidar com uma queda substancial nos rendimentos
e o excesso de tempo ocioso a ser preenchido. Ao mesmo tempo, ela
descobre um problema crônico de saúde – em média, um idoso apresenta
quatro enfermidades simultâneas – e, de repente, recebe a notícia da
perda de um amigo de longa data. O psiquiatra Eduardo Hostyn Sabbi,
coordenador do Departamento de Psicogeriatria da Associação de
Psiquiatria do Rio Grande do Sul (APRS), faz uma comparação:
– É
como um garçom que está recolhendo os pratos da mesa. Daqui a pouco ele
vai ter mais pratos do que os braços dele podem carregar. Perdas
consecutivas têm um impacto superpesado.
A depressão atinge, de
acordo com os Centros para Controle e Prevenção de Doenças (CDC), nos
Estados Unidos, até 5% dos idosos que vivem em comunidade. Os números
mais do que dobram em se tratando daqueles internados em hospitais
(11,5%) e dos doentes em homecare (13,5%).
O envelhecimento
progressivo da população é um fator importante a ser considerado. Dados
da Organização Mundial da Saúde (OMS) indicam que a proporção de pessoas
acima de 60 anos vai quase duplicar até o ano de 2050, passando de 12%
para 22% do total (de 900 milhões para 2 bilhões de indivíduos).
–
Como vamos viver mais, vamos viver mais com a depressão também –
comenta Ricardo Barcelos Ferreira, psiquiatra com especialização em
psiquiatria geriátrica e professor da Universidade Federal de Juiz de
Fora (UFJF), em Minas Gerais.
A depressão é mais comum em algumas
famílias, repetindo-se de geração em geração, explica o geriatra João
Senger. Herdada ou não, está frequentemente associada a alterações
neuroquímicas no cérebro, principalmente na velhice. Os quadros
depressivos podem ter características peculiares entre os mais velhos.
Grande parte dos pacientes não relata, objetivamente, sentir tristeza.
Eles tendem a apresentar queixas quanto a dores no corpo, alterações no
apetite e no sono, perda ou ganho de peso, falta de ar, diarreia ou
constipação, má digestão. Também são comuns sintomas como
irritabilidade, ansiedade, perda de interesse, esquecimento e
dificuldade de concentração.
– A apresentação é atípica: não
podemos ficar esperando que o paciente diga que está triste, chorando,
sem ânimo. Ele pode também não se dar conta de que está deprimido. Às
vezes, o médico diz que é um quadro depressivo, e o paciente não aceita –
destaca Senger.
A personalidade de cada um é determinante para a
forma como esse período da existência será encarado, e a capacidade de
adaptação a adversidades e mudanças pode ser maior ou menor. Pessoas de
baixa autoestima, com uma visão pessimista do mundo ou suscetíveis ao
estresse estão mais predispostas à depressão. Aquelas de personalidade
mais narcisista, por exemplo, podem encontrar dificuldade para aceitar
alterações estéticas como as rugas e a flacidez. Outras, menos
maleáveis, talvez sofram com mudanças repentinas, como a perda do
emprego.
Traços de personalidade se acentuam – a velhice é uma
caricatura do que a pessoa foi, explica Senger. Se você sempre teve o
mau humor como um traço marcante, deverá se tornar um idoso mais
mal-humorado ainda. Quem sempre foi dócil vai ter essa característica
intensificada. Mas o geriatra atenta para ideias equivocadas muito
disseminadas que podem prejudicar o diagnóstico e retardar o tratamento
de doenças. Costuma-se atribuir certos problemas e dificuldades à
terceira idade, como se fossem típicos dessa fase e contra os quais não
se pudesse nada fazer: "É da idade", fala-se com frequência.
–
Esses termos deveriam ser banidos. Não é "da idade". Envelhecer não é
doença. Pode haver uma lentificação, caminhar mais devagar, pensar mais
devagar, mas o envelhecimento não faz com que você não consiga mais
fazer isso ou aquilo. A limitação e a perda de funcionalidade vêm por
doença, não por envelhecer. As pessoas dizem: "Ah, mas com essa idade é
normal que não consiga mais fazer isso". Não, não é normal – contesta o
geriatra.
Habituadas a seguir um calendário de consultas e exames
desde cedo, as mulheres não resistem a procurar um médico quando algo
não vai bem. Já para os homens, a tarefa não parece ser tão simples
–
resistem, ao longo de toda a vida, a bater na porta dos consultórios.
–
É mais fácil uma mulher chegar e dizer para o médico "estou com
depressão", ou qualquer outra doença, do que os homens. É mais fácil o
homem se tornar um alcoólatra do que procurar um laboratório para se
tratar – conta o psiquiatra Ferreira, salientando que a depressão é mais
frequente entre as idosas.
Benefícios de uma vida mais regrada
A terceira idade
é também reflexo dos hábitos mantidos durante décadas – a boa ou a má
alimentação, a prática de exercícios ou o sedentarismo, a exposição
cuidadosa ou exagerada e desprotegida ao sol. Para os que foram
relapsos, um aviso: há como se ter algum benefício mesmo depois de uma
vida inteira desregrada. Praticar exercícios físicos é sempre bom,
funcionando também como medida preventiva e de combate à depressão – a
liberação de endorfina proporciona a sensação de bem-estar e melhora o
humor. Integrar-se a grupos é uma ótima iniciativa.
De acordo com
o gosto pessoal, pode-se procurar aulas de dança, canto, trabalhos
manuais.
Dependendo da natureza da atividade, trabalham-se duas
habilidades ao mesmo tempo: um grupo de caminhada propicia, além do
exercício, a interação, enquanto a turma que se reúne para jogar
canastra está trabalhando também a cognição, importante no combate às
demências. Adotar um animal de estimação é outra boa iniciativa. A
família pode ajudar orientando o idoso na integração e na escolha dos
passatempos. No caso do paciente diagnosticado com depressão, é
imprescindível se submeter a tratamento.
– A pessoa que teve um
infarto por causa de uma aterosclerose corre mais risco de ter um
segundo do que a pessoa que não teve. A que já teve depressão corre mais
risco de ter de novo. Se ela não resolve os fatores (
que a levaram a isso),
vai, daqui a pouco, refazer o quadro frente a outra situação. Não deve
ser só um tratamento químico, vou no psiquiatra e ele me dá um remédio. É
importante entender por que desenvolveu a depressão, modificar o estilo
de vida e evitar episódios futuros – aconselha Sabbi, da APRS.
Quem
nunca sofreu de depressão pode ter dificuldade para compreender como se
sente o paciente nessas condições. O apoio efetivo da família, destaca
Senger, é fundamental.
– Não adianta dizer "o dia está bonito",
"mas não lhe falta nada", "você tem que se ajudar". Não ajudamos as
pessoas assim. Podemos perguntar: "O que eu posso fazer para ajudá-lo?" –
exemplifica o geriatra. – Uma medida importante é fazer com que o idoso
perceba que ainda pode ser feliz e valorizar as coisas boas ao seu
redor – conclui.
Prepare-se para se aposentar
Pode-se
passar um bom tempo fazendo planos para depois da aposentadoria, aquele
que parece ser o período de maior qualidade de vida possível. Viagens,
cursos, tardes na companhia dos netos, happy hour com os amigos – dias
inteiros dedicados a atividades que proporcionam prazer, sem ser
regulado pelo relógio. Para que essa época tenha mais chance de se
concretizar como uma fase feliz quando finalmente chegar, é preciso
preparação. Do contrário, há grande risco de que o encerramento da
carreira profissional acabe se transformando em um gatilho para a
depressão.
Não é incomum que até mesmo as relações conjugais
sofram abalos quando um dos parceiros, que durante décadas se manteve
trabalhando da manhã à noite, de repente começa a ficar o dia inteiro em
casa. Se os períodos de aposentadoria do casal coincidirem, aí serão os
dois cheios de tempo livre e tendo de conviver intensamente.
– O
casamento, que antes se mantinha por conta das outras relações, pode
começar a ficar complicado – aponta o psiquiatra Eduardo Hostyn Sabbi.
João
Senger observa que as mulheres, com um perfil em geral mais versátil e
multitarefas, costumam se adaptar melhor à aposentadoria. Aos homens, às
vezes a falta da identidade profissional é sentida de maneira mais
profunda, e a brusca mudança no cotidiano pode implicar sérias
consequências.
– Se o homem fica sem atividades, geralmente perde
sua identidade, o que leva a ter um sentimento de inutilidade frente à
vida. Pode se deprimir e ficar com a imunidade baixa, dando abertura ao
aparecimento de enfermidades como câncer. É o que chamamos de "câncer do
aposentado" – descreve o geriatra.
– É preciso se organizar com
antecedência para não ter que passar por aquele período vazio. Se a
pessoa não se prepara, é desastroso.
Risco de suicídio é ampliado
A
parcela idosa da população tem alto risco para suicídio. Psiquiatra com
especialização em psiquiatria geriátrica, Ricardo Barcelos Ferreira
alerta que o risco de tirar a própria vida é maior entre idosos do que
na população adulta jovem.
– O idoso chega a tentar o suicídio
sete vezes mais do que o adulto jovem. Os idosos tentam mais e consumam
mais o suicídio do que a população em geral – alerta Ferreira.
Eduardo
Hostyn Sabbi adverte que comentários acerca da morte ou do desejo de
morrer não devem jamais ser ignorados. Pensar que "quem fala não faz" ou
"quem quer se matar se mata", frisa o psiquiatra, são preconceitos que
devem ser abandonados. Quem ouve manifestações na linha de "acho que já
fiz tudo o que tinha de fazer", "não vale mais a pena viver", "não vejo a
hora de a minha viagem ser completada" ou "estou louco que chegue o
trem para eu embarcar" deve tomar uma atitude.
– São pedidos de
ajuda – esclarece Sabbi. – Converse, incentive o desabafo. O assunto já
estará posto na mesa. Às vezes, só isso já resolve, ou pelo menos se
pode dar um encaminhamento.
Além das medidas já citadas, como
participar de grupos e manter laços sociais, outros importantes fatores
de proteção ao idoso, segundo Sabbi, são conviver com filhos e netos,
praticar a religiosidade e manter contato com profissional de saúde, que
possa ser acionado em dificuldades regulares e nos momentos críticos.
Falta de memória pode ser uma pista
Problemas de
memória, como a dificuldade para se lembrar de nomes e procedimentos
simples ou dos lugares onde objetos foram deixados, podem ser sinal de
depressão, e não das temíveis demências. Quadros com queixa de
esquecimento na terceira idade são desafiadores para os médicos: uma
demência pode começar a se manifestar com um estado depressivo, enquanto
a depressão também pode provocar dificuldades de memorização.
Em
geral, quando se trata de depressão com distúrbios de memória, o
paciente é medicado, melhora e, consequentemente, atenuam-se os sintomas
relativos ao esquecimento. Mas os episódios depressivos, principalmente
se estiverem ocorrendo pela primeira vez na vida, podem indicar uma
demência.
– Uma pessoa com doença neurodegenerativa apresenta
perda das suas capacidades cognitivas, com repercussões inclusive na
parte emocional, e uma primeira manifestação pode ser a depressão –
explica o psiquiatra Eduardo Hostyn Sabbi.
Diante da constatação
de problemas de memória, o idoso deve procurar um especialista para que
se possa fazer uma investigação do caso.
– Ainda que demande
muitos cuidados, o diagnóstico de depressão é uma notícia "melhor" do
que a de uma demência como a de Alzheimer, por exemplo. Com os recursos
atuais da medicina, a depressão é potencialmente tratável e tem cura,
mas o Alzheimer ainda não – afirma Sabbi.
Depressão e outras enfermidades
A
saúde mental impacta a saúde física, e vice-versa. Um idoso que tem uma
doença grave ou crônica está mais sujeito a desenvolver depressão, e a
depressão pode complicar a resposta ao tratamento para outras
enfermidades, como um problema cardíaco.
Em sua tese de
doutorado, defendida na Faculdade de Medicina da Universidade de São
Paulo (USP), o psiquiatra Ricardo Barcelos Ferreira avaliou a
prevalência da depressão em idosos. A partir da amostra estudada e da
revisão de outros estudos, Ferreira investigou a relação entre algumas
enfermidades e a probabilidade de que o paciente desenvolva também
depressão.
- Mais de 20% dos adultos acima de 60 anos sofrem de transtornos mentais
ou neurológicos. Demência e depressão são os problemas mais comuns.
- Cerca de 80% dos idosos, destaca o CDC, têm pelo menos um problema crônico de saúde, e 50% apresentam dois ou mais.
- A depressão é mais comum entre pessoas que sofrem também com outras
enfermidades – como condições cardíacas ou câncer – ou cujas funções se
tornam limitadas.
Fonte: Jornal Zero Hora